A ciência sem nome – artigo de opinião in “Diário de Notícias”

A ciência sem nome

Há uma ciência que nos rodeia, que nos afeta diretamente no dia-a-dia mas que em geral ignoramos. Talvez por isso mesmo não a vemos, por estar em todo lado. E também por não possuir um nome distintivo.
Clint Eastwood é o protagonista de vários westerns de Sergio Leone, sendo a sua personagem o Uomo senza nome. Isso é curioso: no fundo o nome dele é Homem sem nome. É engraçado, mas só funciona uma vez: o Shane e o Johnny Guitar dos epónimos filmes tinham mesmo de ser nomeados. O que há num nome? Um nome identifica, seja uma personagem, uma localidade ou uma disciplina do saber. Neste respeito, sabemos o que é a Filosofia, ou a Matemática. Reconhecemos pela etimologia que a Biologia é a Ciência da Vida e que a Geologia é a Ciência da Terra. Este último caso é emblemático: em vez de se tomar a Geologia como um subdomínio da Física, ela é de facto uma disciplina distinta. Podemos citar outro exemplo duma ciência com muitas conexões a domínios afins, mas autónoma e de enorme impacto no nosso dia-a-dia?
Olhemos ao nosso redor. Como cantava Madonna em Material Girl: ‘cause we are living in a material world. Como se chama a ciência que estuda os materiais de que é feito o mundo transformado em que vivemos? Chama-se Ciência de Materiais. Sim, tal como o Uomo senza nome, o nome da ciência que estuda os materiais é… Ciência de (ou: dos) Materiais. Não seria possível arranjar-lhe um nome próprio? Uma possibilidade seria Materiologia, mas isso geraria confusões inevitáveis com a Meteorologia. Há que reconhecer que, como domínio consolidado, a Ciência de Materiais é uma disciplina relativamente nova, sendo no fundo a generalização da Metalurgia, reunindo num só corpo de saber o estudo do comportamento dos materiais (metais, cerâmicos, polímeros, semicondutores, materiais biológicos, nanomateriais, etc.) através do conhecimento da respetiva estrutura, propriedades e processamento.
Ela é inegavelmente importante, com um enorme impacto societal. Não há omeletes sem ovos, nem tecnologia sem os respetivos materiais. As eras históricas recebem o nome dos respetivos materiais-chave: Idades da Pedra, do Bronze, do Ferro. Ela está associada a inúmeros prémios Nobel (da Física ou da Química, como por exemplo os ligados ao grafeno ou aos quasi-cristais). Embora ausente dos curricula do ensino secundário (o que aliás contribui para o seu desconhecimento), é uma disciplina básica e estruturante em cursos superiores de Ciência e Engenharia.
Cantavam os Taxi, nos anos 80: Neste mundo de ferro e aço, onde tudo parece igual, ninguém liga para o que eu faço, mesmo que tudo seja intencional. Olhemos outra vez à nossa volta. Os materiais podem parecer iguais, mas não são. O ferro e o aço não são iguais. O aço é basicamente ferro a que é adicionado de forma intencional um pouco de carbono, que lhe confere a sua elevada resistência e que o torna tão útil. Os Taxi estavam a fazer crítica social e não divulgação científica, mas fica a ideia: por ser largamente ignorada, é preciso um esforço adicional para dar a conhecer ao público esta ciência fascinante. Ela não tem uma griffe derivada do grego ou latim, mas afinal tem um nome que faz todo o sentido, Ciência de Materiais, que nos revela de forma auto-explicativa o seu âmbito e importância.

Professor do Instituto Superior Técnico

Augusto Moite de Deus in Diário de Notícias, 23 dezembro 2018